Para Dona Marcina, não interessava contra quem o Galo iria jogar.
Galo em campo era sinônimo de rádio e tv ligados (A televisão no mudo).
E aprendeu isso com seu pai. Nhô Bento, como era conhecido, era
apaixonado por rádio. Sempre sentava no alpendre da sua casa, ligava o rádio e
fechava os olhos. Ouvia música, notícias, rádio-novelas e as transmissões dos
jogos de futebol.
Aliás, ouvia quase todas as transmissões. Do Galo.
Mesmo morando no interior, Nhô Bento gostava do time alvinegro da
capital. E graças a uma visita em Belo Horizonte, em 1937, quando veio vender
uns produtos da roça. Estava passando na rua e viu uma multidão comemorando um
campeonato. Não entendia bem o que estava acontecendo, até porque só conhecia
os times de futebol do Rio de Janeiro (que conseguia captar no seu velho
rádio).
- O que está ocorrendo, rapaz?
- Somos Campeão dos Campeões!
- Não entendi.
- Disputamos um campeonato só com os campeões de seus estados.
Enfrentamos a Portuguesa, campeã de São Paulo, o Fluminense, campeão do Rio de
Janeiro e o Ferroviário, campeão do Espírito Santo! Somos os melhores do país.
E Nhô Bento não acreditava que ali, no seu estado, entre as montanhas,
estava o melhor time do Brasil.
Voltou pra sua cidade, e começou a escutar as transmissões dos jogos. O
mais perigoso de se enfrentar era o América, da capital. Outro time chato para
se jogar era o Vila Nova, de Nova Lima. O resto eram times sem tradição e que
não ofereciam risco.
Mesmo depois de casado, e com filhos, ele sentava no alpendre e fechava
os olhos, imaginando o que aquela camisa alvinegra estava aprontando pra cima
dos adversários.
Sua filha mais nova, Marcina, era a mais curiosa e apegada ao pai,
sempre se sentando ao lado dele.
Nascida em Março, ele quis homenagear o Galo. E quando descobriu que o time
alvinegro também era de Março, a batizou Marcina.
Seja brincando com as bonecas, levando café e bolo no entardecer, acompanhando
as rádio-novelas ou levando os remédios já na velhice dele, ela sempre estava
lá. Na infância, era no chão mesmo, mas depois colocou uma cadeira ao lado do
pai e aprendeu a amar o rádio. E, principalmente, o Galo, através das histórias
do pai e das transmissões esportivas.
E nem quando seu pai faleceu, sentado no alpendre e de olhos fechados,
ela desligou o rádio.
Aquele pequeno aparelho fazia com que seu pai se tornasse presente
sempre. Ela podia imaginar, graças as ondas do rádio, que ele estava ali,
sentado, com a aparência serena de sempre e os olhos fechados, imaginando os
jogos.
Foi assim que ela soube do título de 1971. Sentada, ouvindo a
transmissão, imaginou o “tirambaço” de fora da área do Oldair que deu a vitória
contra o São Paulo e a defesaça do Renato no chute do Gérson. E do mesmo jeito,
dias depois, pode sonhar com a jogada do Humberto Ramos e o gol do Dadá.
Como ela queria que seu pai tivesse lá, sonhando com ela e comemorando
com ela.
Anos depois, teve vontade de desligar o rádio. Quando Cerezo bateu
aquele pênalti contra o São Paulo, em 1978, ela desligou. Não queria ouvir, não
precisava ouvir.
E apenas agradeceu aos céus que seu pai já estava lá, não vivendo
aquela dor que explodia no seu peito. Seu pai não merecia aquilo. E com
certeza, devia estar numa paz que faria inveja a ela.
Depois, quando conseguiu comprar sua primeira TV e assistir um jogo de futebol
pela primeira vez, rezava e pedia a Deus para ligar um aparelho daquele pro seu
pai. Ele ficaria maravilhado com aquela caixa que permitia ver os jogos. Ou
melhor, as reprises do jogos.
Ele veria a camisa mítica alvinegra em campo. Sentiria a emoção que os
jogadores sentiam.
Mas não abandonou o rádio.
Ele transmitia em tempo real. Fazia a imaginação dela colocar as
imagens do jogo. Ela “via” o queria e ouvia o que o narrador contava.
Naquela pequena cidade do interior, as imagens da TV eram tortas,
sinuosas e com chuviscos. Mas pelo menos era preta e branca.
E nessas imagens, além de conhecer a camisa, se surpreendeu com os
dribles do Reinaldo, a força nos chutes do Nelinho e do Éder e com a elegância do
Cerezo.
Assim, em 1980, 1981 e 1987 contra o Flamengo, ela não apenas sofreu,
como viu a dor no peito dos seus atletas. Pode ver a tristeza nos olhos dos
jogadores. E viu seus irmãos torcedores sofrendo também.
Mas não ligava. O amor que sentia por aquele time, era maior do que
tudo.
E ontem, no aniversário dela, rezou como sempre fazia para agradecer e pediu o mesmo
presente que ela pedia todos os anos. A vitória do Galo.
Sentou na sala, ao lado do esposo (que não gosta muito de futebol) e
foi ver o jogo.
Só que o sinal da TV caiu.
- É muié. Hoje num vai consigui vê o jogo não.
- Ô homi. Isso é o de menos. Vô liga o rádio uai.
Sentou na varanda, ligou o rádio, fechou os olhos e imaginou o jogo, como seu pai ensinou a fazer.
Durante o primeiro tempo, imaginou as jogadas, que pareciam não dar
certo.
Um jogo nervoso, preso no meio de campo. Ouviu as defesas do Giovani,
as jogadas do Tardelli e os passes do Ronaldinho.
No intervalo, seu filho, que morava na capital e sabia que sua mão estava vendo o jogo e deixou para ligar no intervalo, não podia estar ali
com ela e telefonou para parabenizá-la e passar os desejos de saúde, felicidade e
paz.
Dona Marcina, agradeceu e ficou muito feliz com a notícia de que no fim
de semana, o filho estaria lá.
- Quer que eu leve algo mãe?
- Ô meu fi, careço de nada não. Só ocê já é motivo pragradecê a Deus.
-Eu sei mãe. Mas quero te dar um presente, pois ganhei um dinheiro
extra.
- Então trás uma camisa do Galo prá mim.
- Sabia que ia falar isso mãe! Tanto é que já comprei.
- Obrigado fi. Deus lhe pague e dê em dobro procê.
- Mãe, a senhora acha que nós vamos ganhar o jogo?
- Certeza fi. Com o rádio da sorte do seu avô, o Galo ganha.
E ficaram mais uns minutinhos no telefone.
Para o segundo tempo, sentou novamente no alpendre, ao lado do rádio.
Nem precisou imaginar muito quando escutou o primeiro gol. Foi só
lembrar do último jogo, contra o América. Quando ouviu que o gol era do Réver,
de olhos fechados, ela “viu” na mente o capitão subindo o mais alto possível.
Depois, quando ouviu o gol do Ronaldinho, também não teve dificuldades.
Ele estava dando alegrias demais pra ela nos últimos jogos e ela sabia como era
o gol, pelas palavras do narrador.
Aí, foi só esperar o fim do jogo.
Ali, como seu pai, não precisava ver o jogo. O barulho da torcida e as
jogadas eram lindas pra ela. Não porque eram craques que jogavam no seu time. E
sim, porque ela sentia que agora jogavam com amor, com vontade, com a raça que
ela conhecia.
Seu pai a ensinou assim. "Imagine o jogo com amor. É assim que eu
imagino. E esse foi o segredo dos títulos."
Desligou o rádio e foi preparar a cama. Sorria, com a lembrança do
seu pai.
- Ô muié. Corre que vai passar os gols.
- Nada homi. Num preciso vê nada não. Já vi os gols no coração. Vem
deitá e desliga esse trem aí.
E assim, apagaram as luzes e foram deitar.
Seu esposo foi dormir.
Dona Marcina, foi sonhar. Com o filho e o presente que viria. Com os
títulos que pareciam que dessa vez não iam fugir. E com o pai, pela alegria que
ele devia estar.