quinta-feira, 21 de março de 2013

Dona Marcina


Para Dona Marcina, não interessava contra quem o Galo iria jogar.

Galo em campo era sinônimo de rádio e tv ligados (A televisão no mudo).

E aprendeu isso com seu pai. Nhô Bento, como era conhecido, era apaixonado por rádio. Sempre sentava no alpendre da sua casa, ligava o rádio e fechava os olhos. Ouvia música, notícias, rádio-novelas e as transmissões dos jogos de futebol.

Aliás, ouvia quase todas as transmissões. Do Galo.

Mesmo morando no interior, Nhô Bento gostava do time alvinegro da capital. E graças a uma visita em Belo Horizonte, em 1937, quando veio vender uns produtos da roça. Estava passando na rua e viu uma multidão comemorando um campeonato. Não entendia bem o que estava acontecendo, até porque só conhecia os times de futebol do Rio de Janeiro (que conseguia captar no seu velho rádio).

- O que está ocorrendo, rapaz?

- Somos Campeão dos Campeões!

- Não entendi.

- Disputamos um campeonato só com os campeões de seus estados. Enfrentamos a Portuguesa, campeã de São Paulo, o Fluminense, campeão do Rio de Janeiro e o Ferroviário, campeão do Espírito Santo! Somos os melhores do país.

E Nhô Bento não acreditava que ali, no seu estado, entre as montanhas, estava o melhor time do Brasil.

Voltou pra sua cidade, e começou a escutar as transmissões dos jogos. O mais perigoso de se enfrentar era o América, da capital. Outro time chato para se jogar era o Vila Nova, de Nova Lima. O resto eram times sem tradição e que não ofereciam risco.

Mesmo depois de casado, e com filhos, ele sentava no alpendre e fechava os olhos, imaginando o que aquela camisa alvinegra estava aprontando pra cima dos adversários.

Sua filha mais nova, Marcina, era a mais curiosa e apegada ao pai, sempre se sentando ao lado dele.

- Vai começar o jogo, fia.

Nascida em Março, ele quis homenagear o Galo. E quando descobriu que o time alvinegro também era de Março, a batizou Marcina.

Seja brincando com as bonecas, levando café e bolo no entardecer, acompanhando as rádio-novelas ou levando os remédios já na velhice dele, ela sempre estava lá. Na infância, era no chão mesmo, mas depois colocou uma cadeira ao lado do pai e aprendeu a amar o rádio. E, principalmente, o Galo, através das histórias do pai e das transmissões esportivas.

E nem quando seu pai faleceu, sentado no alpendre e de olhos fechados, ela desligou o rádio.

Aquele pequeno aparelho fazia com que seu pai se tornasse presente sempre. Ela podia imaginar, graças as ondas do rádio, que ele estava ali, sentado, com a aparência serena de sempre e os olhos fechados, imaginando os jogos.

Foi assim que ela soube do título de 1971. Sentada, ouvindo a transmissão, imaginou o “tirambaço” de fora da área do Oldair que deu a vitória contra o São Paulo e a defesaça do Renato no chute do Gérson. E do mesmo jeito, dias depois, pode sonhar com a jogada do Humberto Ramos e o gol do Dadá.

Como ela queria que seu pai tivesse lá, sonhando com ela e comemorando com ela.

Anos depois, teve vontade de desligar o rádio. Quando Cerezo bateu aquele pênalti contra o São Paulo, em 1978, ela desligou. Não queria ouvir, não precisava ouvir.

E apenas agradeceu aos céus que seu pai já estava lá, não vivendo aquela dor que explodia no seu peito. Seu pai não merecia aquilo. E com certeza, devia estar numa paz que faria inveja a ela.

Depois, quando conseguiu comprar sua primeira TV e assistir um jogo de futebol pela primeira vez, rezava e pedia a Deus para ligar um aparelho daquele pro seu pai. Ele ficaria maravilhado com aquela caixa que permitia ver os jogos. Ou melhor, as reprises do jogos.

Ele veria a camisa mítica alvinegra em campo. Sentiria a emoção que os jogadores sentiam.

Mas não abandonou o rádio.

Ele transmitia em tempo real. Fazia a imaginação dela colocar as imagens do jogo. Ela “via” o queria e ouvia o que o narrador contava.

Naquela pequena cidade do interior, as imagens da TV eram tortas, sinuosas e com chuviscos. Mas pelo menos era preta e branca.

E nessas imagens, além de conhecer a camisa, se surpreendeu com os dribles do Reinaldo, a força nos chutes do Nelinho e do Éder e com a elegância do Cerezo.

Assim, em 1980, 1981 e 1987 contra o Flamengo, ela não apenas sofreu, como viu a dor no peito dos seus atletas. Pode ver a tristeza nos olhos dos jogadores. E viu seus irmãos torcedores sofrendo também.

Mas não ligava. O amor que sentia por aquele time, era maior do que tudo.

E ontem, no aniversário dela, rezou como sempre fazia para agradecer e pediu o mesmo presente que ela pedia todos os anos. A vitória do Galo.

Sentou na sala, ao lado do esposo (que não gosta muito de futebol) e foi ver o jogo.

Só que o sinal da TV caiu.

- É muié. Hoje num vai consigui vê o jogo não.

- Ô homi. Isso é o de menos. Vô liga o rádio uai.

Sentou na varanda, ligou o rádio, fechou os olhos e imaginou o jogo, como seu pai ensinou a fazer.

Durante o primeiro tempo, imaginou as jogadas, que pareciam não dar certo. 

Um jogo nervoso, preso no meio de campo. Ouviu as defesas do Giovani, as jogadas do Tardelli e os passes do Ronaldinho.

No intervalo, seu filho, que morava na capital e sabia que sua mão estava vendo o jogo e deixou para ligar no intervalo, não podia estar ali com ela e telefonou para parabenizá-la e passar os desejos de saúde, felicidade e paz.

Dona Marcina, agradeceu e ficou muito feliz com a notícia de que no fim de semana, o filho estaria lá.

- Quer que eu leve algo mãe?

- Ô meu fi, careço de nada não. Só ocê já é motivo pragradecê a Deus.

-Eu sei mãe. Mas quero te dar um presente, pois ganhei um dinheiro extra.

- Então trás uma camisa do Galo prá mim.

- Sabia que ia falar isso mãe! Tanto é que já comprei.

- Obrigado fi. Deus lhe pague e dê em dobro procê.

- Mãe, a senhora acha que nós vamos ganhar o jogo?

- Certeza fi. Com o rádio da sorte do seu avô, o Galo ganha.

E ficaram mais uns minutinhos no telefone.

Para o segundo tempo, sentou novamente no alpendre, ao lado do rádio.

Nem precisou imaginar muito quando escutou o primeiro gol. Foi só lembrar do último jogo, contra o América. Quando ouviu que o gol era do Réver, de olhos fechados, ela “viu” na mente o capitão subindo o mais alto possível.

Depois, quando ouviu o gol do Ronaldinho, também não teve dificuldades. Ele estava dando alegrias demais pra ela nos últimos jogos e ela sabia como era o gol, pelas palavras do narrador.

Aí, foi só esperar o fim do jogo.

Ali, como seu pai, não precisava ver o jogo. O barulho da torcida e as jogadas eram lindas pra ela. Não porque eram craques que jogavam no seu time. E sim, porque ela sentia que agora jogavam com amor, com vontade, com a raça que ela conhecia.

Seu pai a ensinou assim. "Imagine o jogo com amor. É assim que eu imagino. E esse foi o segredo dos títulos." 

Desligou o rádio e foi preparar a cama. Sorria, com a lembrança do seu pai.

- Ô muié. Corre que vai passar os gols.

- Nada homi. Num preciso vê nada não. Já vi os gols no coração. Vem deitá e desliga esse trem aí.

E assim, apagaram as luzes e foram deitar.

Seu esposo foi dormir.

Dona Marcina, foi sonhar. Com o filho e o presente que viria. Com os títulos que pareciam que dessa vez não iam fugir. E com o pai, pela alegria que ele devia estar. 

segunda-feira, 18 de março de 2013

Irmãos


Não adiantava argumentar, nem tentar evitar. As discussões eram inevitáveis.

Os dois realmente eram muitos diferentes, apesar de gêmeos.

Antonio era otimista. Cantava alto no estádio. Vibrava com o ritmo da bateria. E sempre voltava rouco pra casa.

Já Carlos era o pessimista. Assistia o jogo sentado. De braços cruzados. E voltava pra casa.

Em trinta anos de vida, em relação ao Galo, os dois só concordaram uma vez. No desejo de ir à despedida dos gramados do cara que deu nome aos dois: Antõnio Carlos Cerezo, o patrão da Bola.

Seu Vicente, o pai dos gêmeos, era fã do Cerezo e colocou o nome dos filhos para homenagear o velho palhaço. E o detalhe é que o Seu Vicente recebeu esse nome em homenagem ao famoso autor do hino do Galo. Seu Mário, pai do Seu Vicente, achava o máximo ter o mesmo nome do lendário Mário de Castro e colocou o nome do único filho em homenagem ao Vicente Mota.

E o fundamentalismo alvinegro foi passado, igualmente, para seus filhos. O que ele não entendia era porque os filhos eram tão diferentes. Ele sabia que Carlos era mais ponderado, analisava mais friamente e tinha mais sensatez para opiniar. Só que faltava a paixão, a vibração e o otimismo do Antonio.

No último clássico de 2012, isso era visível. Quando o rival virou o jogo no começo do tempo, Antonio começou a cantar “Le Le Le, Le Le Le, Le Le ô... ôôôôôõôôô o Galo é o time da virada, o Galo é o time do amooooor”. Pulava e empurrava o time. E Carlos apontava os erros de marcação.

- Se o Rocha não fechar o lado direito, vai ficar difícil. – Dizia Carlos.

- Ôôôôôôôôô Vai pra cima delas Galôôôôôôô – Cantava Antônio.

- Porra Pierre, vamos marcar em cima... ô Cuca, tem que mexer hein...- continuava Carlos.

- Vieeeeeemos para agitaaaaaaar... Não importa se o pau quebraaaaar... – Continuava Antônio.

Enquanto Carlos achava que a situação iria piorar, Antonio tinha certeza que o Galo iria virar...

Com a vitória ou não, a volta pra casa era sempre igual. Carlos falava que a vitória foi boa, mas que estava faltando uma defesa com mais marcação e que tomava gols fáceis.  Antônio nem agüentava falar de tão rouco, mas quando falava era pra gritar Galo na janela do carro.

Por esta razão, se a vida toda foi assim, ontem não seria diferente.

A ida pro Independência foi como sempre.

Enquanto Antonio buzinava e cantava Galo, Carlos reclamava com o pai.

- Não acredito que o Guilherme vai jogar hoje.

- Vai meu filho, temos que apoiar.

- Não pai, não é possível. Entrasse com o Luan.

- Gaaaaaaaaloooooooooo! – Gritou Antonio e acabou com a discussão.

Discussão essa que permaneceu adormecida até o jogo começar. Aliás, até o gol do América.

Na hora em que o Coelho abriu o placar, Antonio olhou pra Carlos já esperando as críticas.

- Vai falar nada não?

- Não. O Galo vai virar.

Era surpreendente. O Galo sofreu gol e o Carlos não falou nada? Não vai falar que foi falha de fulano?

- Sério?

- Com certeza. Jogamos no Horto... esqueceu?

- Eu sei. Mas eu esperava que você já fos...

- Não. O time tá bem. O Galo vai virar. Certeza.

Até Seu Vicente se surpreendeu. Além do Carlos não cornetar, ainda passou confiança. E o melhor era ver que seus filhos não discutiam.

Quando o Galo empatou, para surpresa de Seu Vicente e de Antonio, foi Carlos quem mais comemorou, e ainda puxou o grito na arquibancada.

- ”Le Le Le, Le Le Le, Le Le ô... ôôôôôõôôô o Galo é o time da virada, o Galo é o time do amooooor”

Foi a deixa para Antonio. Os dois começaram a cantar juntos e demonstraram uma sintonia que emocionou Seu Vicente.

No começo do segundo tempo, a situação se inverteu ainda mais. Era Carlos que cantava e Antonio de braços cruzados. Nervoso, anda de um lado pro outro, enquanto seu irmão, por um milagre de São Kafunga, cantava.

Até que o Rever, o capitão, desempatou.

Os dois irmãos se abraçaram como há muito não faziam. E, juntos, abraçaram o pai.

Juntos, aplaudiram a saída do Guilherme.

Juntos, comemoraram mais dois gols do Rever e outro do Tardelli.

Juntos, vaiaram o gol do América.

E juntos, cantaram “O time todo, muito obrigado” no fim do jogo.

Voltaram para casa conversando, rindo, elogiando o Rever, o Tardelli, o Victor e... o Guilherme.

Riram, gritaram Galoooo com a cara na janela do carro e chegaram em casa roucos.

- O que aconteceu Vicente? – questionou Dona Maria, mãe dos gêmeos e esposa do Seu Vicente.

- Nada Maria. Graças a Deus eles perceberam que duas vozes cantam mais do que uma. 

quinta-feira, 14 de março de 2013

Cadim


- Hoje não posso não, Dri. Tem jogo do Galo...

A resposta sempre era essa.

Podia até gravar essa resposta e deixar na secretária eletrônica para as ligações que recebia.


“Oi. Você ligou para o Cadim. Hoje não posso atender ou fazer qualquer coisa. Afinal, tem jogo do Galo. Depois que eu chegar em casa, ouvir a reprise dos gols com o Caixa e ver o VT na TV, eu te ligo.”


Algo assim. Mas não gravou, pois tinha que mudar essas mensagens eletrônicas quando não tivesse jogo. E o risco era de passar o VT novamente e ele não atender. Era melhor deixar quieto.

E olha que era requisitado e fazia certo sucesso com as mulheres.

Não se achava muito bonito. Não era rico. E andava de transporte público. Aliás, não se achava nem atraente. Ou melhor, não achava nada. Só tinha certeza de que era atleticano. O mais atleticano de Cuiabá.

Toda a vizinhança sabia quando tinha jogo. A bandeira ficava pendurada no quintal da casa (Ele jura que é no alpendre). O cheiro da carne invade as residências em volta. E o carro sai cantando o hino.

Sim, sai. Isso porque Cadim não assiste jogo em casa, apesar do pay-per-view. Esse ritual é só o esquenta antes do jogo.

Ele sai de casa faltando 1h pro jogo e vai pro Bar do Mujica. Ou Mujicão, como todos conhecem.

É lá que ele encontra os atleticanos de primeira e segunda linhagem. De segunda porque alguns torciam pra outros times, mas Cadim os convenceu a trocar de time. E não foi por pressão não.

Foi pela história.

Cadim contava do Trio Maldito da década de 20. Falava com propriedade sobre Mário de Castro, o craque do Galo que não aceitou jogar na seleção. E falava do Kafunga e suas defesas salvadoras. Enchia o peito pra falar que o primeiro campeão interestadual na história foi o Galo, em 1937. Brigava com quem brincava sobre a excursão na Europa, que rendeu o “título” de campeão do Gelo. Isso sem falar quando descrevia, com detalhes, os dribles do Reinaldo e os gols do Dada e do Éder. 

E isso porque ele tem apenas 23 anos, mas sabia a história do time todo.

Sempre que questionado, afirmava: “Brasileiro estuda história do Brasil. Atleticano estuda história do Galo”.

E não pense que isso se deve a internet não. Herança do seu avô, Sô Eleotério, que guardava noticias de jornais. Depois que seu avô faleceu, recebeu a herança e carregou na mala quando se mudou do interior de Minas para o Mato Grosso.

O seu pai, Mário, e cruzeirense, não queria carregar. Mas quando tá no sangue não adianta. Ainda mais do avô falecido. E levou a tralha toda pra Cuiabá.

Quando seu pai faleceu, há poucos anos atrás, se tornou chefe da casa. Sua mãe voltou pra Minas, mas ele tinha que trabalhar e, como demorou muito tempo para passar no concurso do Estado, não podia mais sair de lá. Fincou sua bandeira na cidade. A bandeira alvinegra.

E lá no Mujicão os freqüentadores tinham mesas reservadas. 

Adriana chegou de surpresa, pois desconfiava que ele mentia quando dizia que iria assistir o jogo.

- Onde é a mesa do Ricardo?

- De quem, moça?

- Do Ricardo.

- Não conheço.

Ela sabia. Só podia ser mentira. Ele tinha era outra, aquele saf...

- Cadim!

E ela ouviu o hino vindo do carro dele. Vários foram cumprimentá-lo. E só depois de cumprimentar a todos, viu a moça.

- Uai, Dri. Você aqui?

- Resolvi vir assistir o jogo com você.

- Ah, maravilha. Bom demais uai.

- Onde é sua mesa?

- Que mesa? Atleticano não tem mesa. Galo não senta. Ou deita ou fica em pé uai!

E as risadas tomaram conta do bar.

- Tem jeito não filha. O Cadim só vê o jogo em pé, no balcão. - respondeu Mujica.

- Ô Mujica! Desce a cerveja hômi de Deus!

E se apoiou no balcão.

Era jogo difícil, na altitude da Bolívia, mas o time tava completo.

Adriana estava meio deslocada. Até gostava do Galo, mas estava pelo Cadim, que não tava nem aí pra ela. Mas não era pessoal. Ele não estava nem aí pra ninguém. Ele só queria saber do Galo.

E logo quando o Galo abriu o placar e comemoração tomou conta do bar, Adriana se assustou.

Cadim pulava, cantava, girava a camisa. Mas se assustou principalmente porque ele, logo após o gol, a beijou na frente de todos, algo que não fazia.

- Eita Dri! Tá sorte pro Galão!

E o bar se agitou. O hino, o nome dos jogadores e as músicas da torcida ocupavam o ambiente. E Adriana se assustou de novo porque, quando se deu conta, batia os pés e as mãos no balcão acompanhando a torcida. E o melhor foi que nem se importou.

Só foi se importar quando o time boliviano empatou. E se importou porque não concordava com as criticas que o goleiro Victor recebeu no bar. Não concordava, afinal, se há poucos minutos cantava que era o melhor goleiro do Brasil porque criticar quando ele mais precisava?

Discutiu com dois torcedores e quando olhou para o lado, retomando a calma, apenas percebeu o sorriso no rosto de Cadim, que olhava para a TV.

E no intervalo, pode, enfim, aproveitar o rapaz, que lhe deu atenção. Não 100%, porque faltava ainda o segundo tempo.

- Cara, que surpresa boa. Nem sabia que você era atleticana.

- Nem sou Cadim. Vim aqui pra ficar com você.

- Ah, era sim. Ninguém sai defendendo jogador assim não. E você já estava até cantando o refrão do hino.

- Fiz nada disso não.

E quando o segundo tempo voltou e a tensão tomou conta do Bar, era Dri que, sem perceber, estava vidrada na TV e Cadim que olhava pra ela.

Adriana se impressionou com a raça dos jogadores. Na altitude. No frio. Estavam cansados e sem ar. Mas davam carrinhos e se atiravam na bola. Poderia faltar o oxigênio. Mas tinham alma. O espírito atleticano. 

Estava tenso. Muito tenso. Os 35 minutos mais complicados do jogo. Chances pros dois lados. Mas ela acompanhou Cadim. Ou ela a acompanhou não se sabia mais.

Porque na hora do gol contra dos bolivianos, ela estava arrepiada. Beijou Cadim e cantou, pulou e só não girou a camisa por razões óbvias. E também porque não tinha camisa do Galo.

E até o final ficou gritando Galo. 13 minutos arrepiada. 

Aquele arrepio que todos os atleticanos entendem.

Assim que o jogo acabou, Adriana entendeu o porque daquele sentimento todo.

Entendeu, que pro Galo não importa altitude. Importa atitude. Atitude daqueles que não desistem e tem a raça como maior característica.

Pela primeira vez, não quis competir pelo espaço no coração do Ricardo, até porque agora o dela também estava com o mesmo preenchimento. Agora, os dois, mais do que nunca, eram um amor só.

Cadim adorou a ideia. Gostava mais dela do que nunca.

Ficaram ali, de mãos dadas, conversando e falando sobre o Galo por um bom tempo.

E então saíram do bar. Juntos. E envoltos na mesma bandeira. 


Bandeira que seria ainda muito presente na vida deles.


sexta-feira, 8 de março de 2013

A missão de Ronaldo


Faltando apenas uma hora para o jogo, Ronaldo fazia, exatos, 35 anos e 2 dias sem colocar o pé em um estádio de futebol.

“Nem mesmo pra ver o show do Roberto Carlos. Ou do Paul McCartney”, repetia sempre que mencionava a data.

Sim, ele falou a verdade. Ou melhor, falava. Porque agora, ele completa poucas horas sem ir.

Mas não foi fácil. Era promessa, dessas que torcedores fazem todos os dias, e ele não pretendia descumprir. E olha que ele passou por momentos de muita força de vontade.

Em 1980, quase descumpriu. Mas estava muito recente ainda. Em 1985, caso o goleiro Rafael do Coritiba não fechasse o gol, ele talvez fosse à final do Brasileiro daquele ano. Até hoje, há uma lenda que fala que ele, no mítico Bar do Salomão, nem achou tão ruim assim. Porém, sua mulher fala que ele tinha uma camisa nova guardada no fundo do armário para estrear na final.

Camisa essa que quase foi ao 1987, nas semifinais contra o Flamengo. Ela chegou a ir pro corpo, junto com o ingresso no bolso. Mas foi a bolsa da mulher que não ajudou, e ele teve que levar a mulher à maternidade, para o nascimento do seu filho, Renato.

Mas foi em 1999 que a vontade cresceu (mais até do que contra a Portuguesa em 1996), pois era final de campeonato e naquele ano tinha um tal de Marques no time. Comprou ingresso (escondido), mas foi assaltado e ficou de fora.

Ronaldo resistiu bem às tentações. E olha que não foi por falta de companhia. Seu pai o chamou pra ir, sua esposa, seus amigos de faculdade. Seu filho implorava, mas resistia a todos. Mas devido a tantas negativas, as pessoas pararam de pedir sua companhia.  

Renato, em especial, pediu por anos. Foi ao Mineirão com seu avô.  Ao Independência (antigo) com seu tio. Pra Arena do Jacaré com seus amigos. Mas seu sonho era ir com o pai.

A angústia ficava por conta da Dona Julieta, sua mãe. Sempre achou a relação de Ronaldo com Renato um pouco fria. Brigavam muito, discutiam por pouca coisa. “São como óleo e álcool, não se misturam”, dizia sempre.

Porém, o destino é escrito por Deus e, se às vezes temos que aceitar o que acontece, outras temos que aprender a apreciar os desejos divinos.

Ronaldo, maravilhado com o que seu xará gaúcho fez pelo time, comprou uma camisa escondido. Com o 49 nas costas. Mas não usava.  Não na frente de ninguém.

E ontem Julieta estava viajando para o interior, visitando uma parente adoecida, o que levou Ronaldo às compras.
Cerveja, pastéis, um pacote de amendoim japonês. E o manto no corpo. Sozinho em casa. Ele e a TV.

E o telefone.

- Alô?

- Pai?

- Oi.

- Pai, sou eu. To precisando de um favor. Esqueci meu cartão do Galo na Veia em casa. Tem como você trazer pra mim?

- Onde vc tá?

- To no Independência pai.

- Falta 1 hora pro jogo. Dá pra você buscar aqui.

- Não dá pai. O cartão tá na carteira. E a carteira tá na estante.

- Como que você chegou aí?

- Vim de carona com o Mateus pai.

- Você sabe que eu não gosto desse menino. Ele sempre tá bebendo e hoj..

- Pai, já sei. Dá pra trazer aqui?

- Fazer o que né.

- Tá. To saindo.

- Me encontra em frente ao bar da Tia Morena. Minha bateria tá acabando e caso voc...

É. Acabou a bateria. E dessa vez não tinha jeito. Ele tinha que ir ao estádio.

Pegou trânsito, mas chegou conseguiu chegar faltando 20 min pro jogo começar. O problema era chegar a tal Tia Morena.

Desceu a rua e viu a torcida. Milhares, como há muito não via.

O coração esquentou, como há muito não acontecia.

E descendo a Pitangui, achou o tal bar. E lá estava o Renato.

- Toma aqui meu filho.

- Uai pai, camisa do Galo?

- É.

- Uai Seu Ronaldo. Que milagre é esse aqui?

Era o Mateus.

- C Tá bom Mateus? Só vim trazer isso pro Renato.

- Naldão é você?

Era o Guimba. O grande Guimba, amigo da época do Mineirão. Do bar 27.

Não podia acreditar. Depois de um longo abraço descobriu que o Guimba, ou o Paulo Renato, era o pai do Mateus.

- Coisa boa te ver velho Guimba. Vim só trazer isso pro meu filho.

- Não precisava. Eu disse pra ele que tinha um cartão sobrando. Mas ele não aceitou e disse que queria os pontos que o Galo na veia dá pra quem comparece. Você vai em qual portão?

- Eu to sem ingresso. Você sabe que não vou ao estádio desde 05/03/1978 né?

- Mas agora você tem ingresso. E vai assistir sim. Vão bora.

Desta vez não teve nada que atrapalhasse. E ele entrou pro estádio.

Seu coração pulsava no ritmo da bateria que tocava no Galo na Veia. Seus pés batiam o chão no ritmo do hino. Os braços permaneciam cruzados, para não demonstrar a alegria que sentia. Mas os olhos falavam por si. Brilhavam.

E brilhavam porque além da torcida, um torcedor em especial chamava a atenção.

Renato cantava. Xingava. Mas sobretudo, apoiava. O tempo todo.

- Parece você no Mineirão né Naldão?

- É Guimba... lembra demais.

Para ele, ver o filho cantando e apoiando daquele jeito era motivo de orgulho. Não precisou estar no estádio com filho para passar sua paixão. Estava no sangue. Era Galo na Veia. Sua missão na terra, na própria visão, estava cumprida.

Porém, com o fim do primeiro tempo e com o placar em branco, começou a achar que ele era o pé-frio que atrapalhava. Ele, que estava atrás do gol dos pênaltis em 1978.

Até agora ele não sabe se foi uma façanha do seu xará gaúcho ou se foi o dedo divino, mas quando a bola chegou ao pé do Jô, e o placar foi inaugurado, ele não sabia o que fazer.

Era muito tempo sem ver o gol no estádio. No último jogo mesmo, o placar estava em branco.

Só que Renato resolveu o problema.

Gol do Galo e os braços se estenderam. Um abraço de pai e filho que demorou 25 anos para sair. Um abraço que gerou lágrimas nos dois. O abraço que misturou o “óleo e o álcool” que Dona Julieta falava.

E essa mistura só precisou do calor do jogo para ajudar a incendiar a torcida.

Ronaldo cantou. Pulou. Abraçado com seu filho. Abraçado com seu amigo de arquibancada de Mineirão. Abraçado com o amigo do filho que recusava.

Comemorou o segundo gol com mais alegria. Agora não havia nada a esconder. Nada a temer.

Nem mesmo o gol do adversário no finalzinho, desanimou. Continuou a cantar. Agora, a camisa, antes escondida, era a camisa da sorte.

Saiu do estádio e já marcou o local de encontro com o Guimba, avisando o amigo.

- Não é só o Galo Vingador que está de volta. O Naldão do Bar 27 também está.

Guimba sorriu e despediu do amigo. De longe e com sorriso no rosto viu o pai e filho, saindo, abraçados. E sumindo no meio da massa.